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Para Gilberto Gil, o espaço-tempo, mais que relativo, é reativo: o que o determina é o "aqui" (espaço) e o "agora" (tempo). Como na canção, essas duas coordenadas exibem, no gráfico móvel da vida, o melhor lugar do mundo para se estar.
"Aqui e agora." É desse posto impermanente, transitório que, aos 77 anos, o compositor, violonista, cantor, pensador baiano, assiste e reage às 20 canções (registros, programas, festivais, shows, clipes, ensaios) sempre mais próximos possível da época em que foram lançadas, selecionadas pelo cineasta Lula Buarque de Hollanda, entre os anos de 1966 e 1983. Os vídeos compõem a espinha dorsal de "Gilberto Gil Antologia - Vol.1 ", filme que participa da Première Brasil do Festival do Rio 2019 e, em seguida, será exibido no canal Curta!.
Sem nada saber do roteiro ou da lista de canções, Gil - filmado no estúdio em planos bem fechados - é embebido de luz e intimismo. Assim desarmado, ele vai tecendo, ao sabor de som & imagem, suas memórias e visões. Isso traz um poder de síntese que só a surpresa, a distância e maturidade podem fazer fluir. O que dá origem a um filme que não explica ou analisa. Antes, vivencia.
“Busquei uma linguagem cinematográfica que favorece à resposta sensorial: sem legenda, sem linha de questionamento, só mesmo a sequência cronológica com as músicas, e os comentários do artista. Elas foram escolhidas de um cruzamento entre meu olhar para o que é antológico e aquilo que a pesquisa ia permitindo garimpar, encorajado pela minha longa relação com Gil no audiovisual” descreve Lula.
De maneira parecida com a que Miles Davis & banda improvisam ante as imagens inéditas de "Ascensor para o cadafalso", Gil, só, luminoso, compõe, ao longo da projeção, uma "trilha" de palavras incidentais para o conjunto da obra pronta. A essa ele assiste, de novo, como se tudo fosse novo outra vez, brindando o público com pérolas, pequenos causos desconhecidos, emoções reelaboradas.
“A confiança, a intimidade e a amizade depois de tantos trabalhos, que eu e Lula temos, fizeram com que eu pudesse ficar à vontade e tranquilo, e permitiram que essas coisas perdidas voltassem como se eu as estivesse vendo e ouvindo pela primeira vez. Isso traz grande nitidez para o que eu era naqueles momentos, o que fazíamos, o que sentíamos” comenta Gilberto Gil, por telefone.
Assim, ao se ver no palco do Festival da Record no tenso 1968 interpretando "Domingo no Parque", Gil se espanta, diante das câmeras, com o abismo entre o que parece e o que é.
"Eu estava muito, muito nervoso. E hoje em dia eu vejo as imagens e fico dizendo: puxa, engraçado, não parece nada disso, né?! Parece que eu tô ali alegre, cantando, satisfeito da vida".
A gênese de "Domingo no Parque", uma das bases do Tropicalismo - revela Gil, no filme - vem, antes, do imaginário marítimo, da Salvador dos pescadores, saveiros, a Baía de Todos os Santos, despertadas durante uma visita aos Caymmi. Embora a letra não tenha pescador nenhum e o universo da música seja bem urbano e interiorano.
“Ele deslocou aquele insight para a impressão de uma alma maior dos povos, que transcende o mar, para além da própria Bahia, e que é universal” comenta o roteirista Emílio Domingos.
Saborosos relatos sobre processos de criação desfilam na tela. Garrancheado num caderno ao lado da cama após uma viagem de LSD em Portobello Road, primeira morada do exílio em Londres (1969-1971), o verso-refrão de "Expresso 2222" ficou esquecido numa gaveta e reapareceu em Notting Hill, segunda morada, para, então, virar música.
O tema de "Cálice", que revemos, balbuciado, sem letra, na famosa cena no Festival Phono 1973 - quando os microfones de Gil e Chico são cortados -, foi gestado por Gil na sexta-feira da Paixão, quando pensava em Cristo na Cruz. Dia seguinte, banhado a cálices de Fernet-Branca (o vermute mais amargo do mundo), o encontro na casa de Chico Buarque fez nascer a percepção do jogo de palavras remetendo à censura.
Que, no fim das contas, recaiu sobre a composição.
Para o público, os 70 minutos de filme serão tão rápidos e tão eternos quanto um mergulho em águas profundas. Não apenas no amplo cordel verbal do artista (que reserva, no breque, surpresas sobre a "língua do pê" e um encontro capilar com salvador Dali), mas na excelência musical do ex-sanfoneiro que virou um dos violões mais inventivos, técnica, melódica e harmonicamente, que o Brasil já viu.
Isso fica nítido tanto na interpretação de "Viramundo" em 1966 - com o rosto redondo juvenil de publicitário da Gessy Lever -, quanto em clipe de "Lamento sertanejo" à beira do Abaeté quase dez anos depois, o corpo magro que marcaria a silhueta perene.
Ou na impressionante linha de baixo (parece que há banda, mas é só ele e o violão) numa solitária passagem de som de "Esotérico", composta para os Doces Bárbaros. Dessas imagens raras, que ficariam engavetadas.
Na única canja de estúdio, "Eu vim da Bahia", Lula constrói uma ponte entre a sabedoria do ancião e o jovem Gil filmado por cinegrafistas italianos, caminhando pela Salvador de 1968, dublando a mesma canção: as diferenças do tempo não escondem a integridade do artista, que é uno.
A potência ritualística do pop-afoxé de "Toda menina baiana" em total fusão com o público (a baiana em questão é a filha Narinha, brincando, em casa!), e a náusea-soul expressa em "Palco" ("o diabo venceu", declara, enigmático) levam o filme aos velozes anos 1980. Aqui, também, emergem reflexões precisas sobre a cisma de Roberto Carlos com "Se eu quiser falar com Deus" e o pioneirismo de "Super-Homem, a canção".
O filme fecha numa versão de 1983, ao vivo, de "Aquele abraço" gravada no especial de fim de ano do Chacrinha para a Globo, no Maracanãzinho lotado. A apoteose popular, de um tipo que não se vê mais, filmada do ponto de vista do palco, leva Gil, hoje, de volta a 30 anos atrás, quando a música foi criada:
"Uma frase que eu ouvia o tempo todo dos soldados lá do quartel onde estava preso: aquele abraço, aquele abraço! Falavam entre eles e tudo mais, e eu não sabia o que era aquilo. Só vim a saber depois que saí da prisão e ouvi o programa de televisão do Lilico, um humorista, onde ele dizia: aquele abraço! O tempo todo. Aquele abraço! Batia um bumbo e ele dizia: aquele abraço! Eu saindo da prisão em 1969, encontrando as ruas do Rio de Janeiro ainda enfeitadas pro carnaval. Era quarta-feira de cinzas, o dia em que eu saí da prisão. E aí, o Rio de Janeiro continua lindo, né? Ela (a música) busca descortinar na paisagem aquilo que agrada aos olhos. A possibilidade... da explosão".
E saltando de volta ao presente explosivo, Gil reengrena o refrão:
"O Rio de Janeiro continua sendo. Está ao mesmo tempo feio e lindo, como tudo. Tudo é feio, horrível e tudo é belo o tempo todo. É assim."
Para nós, que conhecemos Gil, essa antologia trará novas maneiras de vê-lo através do seu próprio olhar. Para as novas gerações que chegam e para o futuro, oferece-se uma viagem inédita no espaço-tempo em que Gil habita: aqui e agora, ontem, hoje e sempre - o melhor lugar do mundo.
Arnaldo Bloch, dezembro de 2019
Um filme de Lula Buarque de Hollanda
Com produção de Flora Gil e Leticia Monte
Espiral e Gege Produções ©2019
Filmografia de Lula Buarque de Hollanda com Gilberto Gil
Tempo Rei (co-direção Lula Buarque de Hollanda e Andrucha Waddington, 1996)
Pierre Verger, Mensageiro Entre Dois Mundos (direção Lula Buarque de Hollanda, 1998)
Filhos de Ghandy (direção Lula Buarque de Hollanda, 1999)
Viva São João! (produção Lula Buarque de Hollanda e direção Andrucha Waddington, 2002)
Kaya N`Gandaya (direção Lula Buarque de Hollanda, 2002)
Gilberto Gil Antologia Vol, 1 (direção Lula Buarque de Hollanda, 2019)
Sobre a produção
Financiado pelo Fundo Setorial do Audiovisual (PRODAV 06/2014 e PRODAV 01/2013), o longa-metragem é uma realização das produtoras Espiral e Gege Produções em produção inédita para o Canal Curta!.
Sobre a Espiral
A Espiral é uma produtora independente baseada no Rio de Janeiro que desenvolve, produz e distribui conteúdo audiovisual, de música e de arte contemporânea. Com foco de interesse e pesquisa na cultura contemporânea, nas artes, na tecnologia realiza filmes de ficção e documentários, séries, festivais e instalações. Dentre suas recentes produções destacam-se os longa metragens O Muro (2016), Uma Garota Chamada Marina (2017), Movimentos do Invisível (2019), Favela É Moda (2019), O Vendedor de Passados (2014), o festival Visualismo Arte,Tecnologia e Cidade (2015).
Sobre a Gege Produções
Motivada pela riqueza e pluralidade da cultura brasileira, a Gege Produções Artísticas atua desde 1978 buscando a valorização e reconhecimento deste nosso vasto patrimônio. Desde então, além de gerenciar a carreira de Gil, presta serviços na área de elaboração e execução de projetos culturais, organização e produção de eventos. A Gege também atua como gravadora fonográfica e produtora de cinema, e entre as principais realizações nesta área estão a co-produção dos documentários Tempo Rei (1996), Pierre Verger Mensageiro Entre Dois Mundos (1998), Filhos de Ghandy (1999) e do longa metragem Eu, Tu, Eles (2000).